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“Foi plano de Deus eu resgatar essa menina de situação de pobreza e abandono, sem pensar nas dificuldades e desafios” – Rosana Acçolini/Candeia

Pesquisas e estudos comprovam que no processo de adoção de crianças no Brasil, boa parte dos pais e/ou responsáveis prefere crianças recém-nascidas, de aspecto físico semelhante aos pretendentes e com boa saúde física e mental.

A dona de casa Assunta de Alice Fanton, 69 anos, rompeu todos esses paradigmas ao lutar para que Maria Cristina Silva de Alice, hoje com 36 anos, se tornasse sua filha e companheira de vida.

Em 1984, quando Assunta iniciou a adoção, Maria Cristina estava com nove meses, 11ª filha de um casal absolutamente pobre e, depois confirmado o diagnóstico, com retardo mental agravado devido à subnutrição uterina. “Com nove meses, ela nem firmava a cabeça e não tinha forças nos braços e pernas”, a mãe conta.

Outros agravantes demonstram o tamanho da decisão tomada pela dona de casa, na época com 33 anos. Ela nasceu numa família tradicional, de origem italiana e rural (viveu até os 20 anos no sítio), que tinha visão conservadora e até mesmo preconceituosa em relação à adoção.

E mais: mantinha um noivado de 16 anos com Otávio Fanton Filho (entre idas e vindas), que depois se tornou seu esposo (por quatro anos), e que, finalmente na iminência de se casar, precisava aceitar a adoção da criança.

 

Plano de Deus

 

Assunta é uma mulher de fé, por isso justifica com convicção onde encontrou tanta coragem: “foi plano de Deus eu resgatar essa menina de situação de pobreza e abandono, sem pensar nas dificuldades e desafios. Nunca me arrependi”, ela garante.

Por sinal, foi participando de ação de pastoral da igreja católica que encontrou Cristina e a família. “Quando a conheci fazia não sei quantos dias que ela era alimentada somente com água e açúcar”, relata Assunta.

O grupo conseguiu que a criança entrasse na Apae de Bariri, o que permitiu o início da sua recuperação, pelo menos alimentar. “Quando chegou no período de férias, ficou acertado que ela ficaria um mês em casa, comigo e minha mãe”, afirma.

Era véspera de Natal, período comum de muita comilança, em especial numa família de origem italiana. “Os olhos dela brilhavam. Nunca vi uma criança ter tanta fome. Minha mãe até cansou de dar maçã raspada”, resume Assunta.

Talvez tanto empenho tenha sido demais para o pequeno organismo debilitado. Consciência ou não, Cristina precisou ser internada com problemas gastrointestinais. Aí ficou claro que o vínculo já havia se formado. “Ela pedia a presença da mãe e avó adotivas e somente tomava o remédio com a gente”, relata.

Foi nesse momento, que uma pessoa se tornou importante nesse processo. O pediatra Antonio Alberto de Carvalho Frizeira, que, segundo Assunta, “foi um anjo”. Ele apoiou a adoção, aconselhou manter contato com a antiga família e acompanhou todas as fases do desenvolvimento infantil: o engatinhar, o andar, os dentes nascendo. “Em tudo ele tinha um carinho especial pela Cristina”, diz a mãe.

Até hoje a saúde da filha inspira cuidados: é diabética e luta contra os altos índices de colesterol e triglicérides.

 

Aluna exemplar

 

Na história de Cristina, uma característica chama a atenção. A vida inteira, até hoje, ela frequentou escolas regulares e especial. Quando menina frequentou a Escola Euclydes Moreira da Silva; adolescente, a Escola Modesto Masson e já jovem, a Escola Ephigênia Cardoso Machado Fortunato. Integrou todos os tipos de inclusão educacional e classes especiais que as redes regulares de ensino adotaram.

Em todas, mesmo com os problemas cognitivos e de aprendizagem (nunca foi além do abecedário), evoluía por série acompanhando as turmas de estudo e participava das festas, feiras, viagens e formaturas. Elas colecionam centenas de fotos dessa trajetória.  “Acho que é porque sempre foi muito participativa. Dentro de suas limitações, era uma aluna exemplar, não faltava nem doente”, conta Assunta.

Ao mesmo tempo, nunca deixou de frequentar a Apae, onde permanece até hoje. Ela adora e mantém o mesmo nível de participação. É integrante de vários projetos: artesanato de colares, coral, luta marcial (jiu jítsu) e fanfarra, onde toca surdo.

Maria Cristina e o troféu “The Voice Brasil”, pela participação em um dos projetos da Apae de Bariri – Rosana Acçolini/Candeia

Desafios

 

Assunta relata que entre as idas e vindas, a última vez que voltou com o noivo já estava com Cristina, e impôs como condição para casar que ele aceitasse a adoção.

Isso ocorreu, mas o casamento foi afetado pelo problema de alcoolismo de Otávio. Foram somente quatro anos, pois ele faleceu precocemente, mas resultaram num relacionamento abusivo, que trouxe muito sofrimento à mãe e, consequentemente, à filha. “Mesmo assim, ela sempre gostou muito do pai e respeita sua memória, sem eu nunca pedir”, diz.

Há cerca de sete anos, Assunta luta contra o câncer, primeiro em uma e depois na outra mama. São anos de tratamento no Hospital Amaral Carvalho. Passou por duas mastectomias, longas sessões de químio e radioterapia, perda de cabelos e outros efeitos colaterais. Hoje faz acompanhamento de quatro em quatro meses. “Medo a gente sempre tem. Quantas vezes olho para ela e penso, se acontecer quem vai cuidar?”.

Por causa disso, foi ao cartório. Está em processo de transferência da casa que residem para o nome da filha. Mas ela é interditada judicialmente. Então, precisa de um (a) tutor (a).  A esperança é que parente próximo se responsabilize pela nova tutela e garanta amparo e moradia para a jovem no futuro.

Outro medo é também uma deformidade da sociedade brasileira. Muitas pessoas, em especial homens, tendem a se aproveitar da ingenuidade mental do deficiente para abusos sexuais. Cristina já correu esse perigo em várias ocasiões e lugares: escola, festas, rua e calçada. “Até hoje, consegui evitar com ajuda de amigos, familiares e até professores. Mas, a vigília é constante”, conta ela.

 

O lado bom

 

A dona de casa tem certeza que se não tivesse Cristina, hoje estaria sozinha. Perdeu pai, mãe, marido e nunca conseguiu engravidar.  Ambas são religiosas e frequentam as celebrações na paróquia central. ‘É minha companheira”, resume.

Têm espírito festeiro. Participam com empolgação de eventos como formaturas, confraternizações e, em especial, dos aniversários da Cristina. Já passaram anos realizando a festa no Restaurante Sucata, com a participação de amigos e familiares por adesão. “Ela passava meses convidando todo mundo”, se diverte a mãe.

Depois da doença, diminuiu o ritmo e as festinhas ocorrem na Apae, em companhia de colegas e professores e com bolo e refrigerante. Mas com a mesma empolgação.

Tanto Assunta como Cristina admitem ter “gênio forte” e que vivem “entre tapas e beijos”. Falam alto e, mesmo que seja uma simples conversa, certamente os vizinhos escutam.

O último “arranca rabo” ocorreu segunda-feira, quando decidiram limpar um baú que Assunta mantém no quarto. Passaram o dia “brigando” para decidir o que mantinham e o que seria jogado fora. À noite, cansadas, dividiram uma sopa de feijão no jantar. Em dado momento, Cristina sorriu, bateu no braço da mãe e sentenciou: ‘a gente briga, mas se ama, né?”.